
Sobreviventes (2024), longa-metragem nacional dramático, distribuído pela Pandora Filmes, estreia, oficialmente, nos cinemas brasileiros, a partir do dia 24 de abril de 2025, com classificação indicativa 16 anos e 111 minutos de duração, filmado em preto e branco.
O cinema tem o poder de confrontar memórias históricas e revelar verdades incômodas, e o último longa do falecido cineasta português José Barahona, faz exatamente isso. Com uma premissa simples, mas profundamente simbólica —sobreviventes de um naufrágio, colonizadores e escravizados, são forçados a coexistir em uma ilha deserta — o filme transforma esse cenário em uma poderosa metáfora sobre relações raciais, memória colonial e as cicatrizes históricas que ultrapassam o fim da colonização formal.
Desde os primeiros minutos, Barahona imprime ao filme uma brutalidade honesta, recusando-se a suavizar as tensões que emergem no pequeno grupo de sobreviventes. A ilha, embora inóspita, está longe de ser neutra: os fantasmas da opressão ainda determinam as regras do jogo. Mesmo longe do mundo conhecido, as hierarquias sociais persistem, e os ex-colonizadores lutam para manter o controle sobre aqueles que, teoricamente, foram libertos.
Entre os momentos de maior impacto na narrativa, destaca-se o diálogo entre João Salvador (Allex Miranda) e o ex-senhor de escravizados, Fradique (Miguel Damião). Ao afirmar “São as peças brancas que sempre ganham”, João expõe não apenas um lamento, mas também uma crítica feroz ao desequilíbrio estrutural entre opressor e oprimido — mesmo quando o tabuleiro parece virado.
O roteiro, assinado por Barahona e José Eduardo Agualusa, busca dar voz a personagens negros e confrontar os efeitos duradouros da escravidão. No entanto, o desfecho da história — onde os protagonistas negros, mesmo libertos, não encontram paz ou autonomia plena — levanta questões importantes sobre autoria e representação. Até que ponto é possível abordar a dor alheia sem, ainda que involuntariamente, reforçar sistemas de exclusão?
José Barahona, conhecido por sua abordagem sensível e crítica, conduz o filme com uma estética cinematográfica que lembra o teatro existencialista. Seu trabalho carrega uma clara reverência a Ingmar Bergman, especialmente “O Sétimo Selo” (1957), replicando simbolismos e cenas onde metáfora e existência se fundem. Essa influência se faz presente no clima melancólico do filme e nas discussões filosóficas que permeiam os diálogos.
Além das excelentes atuações de todo o elenco, a trilha sonora, composta por Philippe Seabra, da banda Plebe Rude, com colaboração de Milton Nascimento, é um dos grandes destaques da obra. Ela percorre o filme como um fio condutor emocional, costurando lirismo e força, dando à narrativa um peso ainda maior.
Visualmente, Barahona utiliza enquadramentos que reforçam a solidão da ilha, tornando o ambiente um reflexo das estruturas de poder que, mesmo em ruínas, continuam a oprimir. A cinematografia explora contrastes entre luz e sombra, enfatizando o dilema central: ainda que tudo pareça desmoronar, certos fantasmas do passado não desaparecem.
“Sobreviventes” é um filme que incomoda — deliberadamente. Barahona não quer confortar o espectador; ele nos arrasta para um confronto com o passado colonial, não como um capítulo encerrado nos livros de história, mas como uma sombra viva e persistente.
A ilha, que deveria representar um novo começo para os náufragos, se transforma em um espelho cruel, refletindo a resiliência assustadora das estruturas de poder. Mesmo diante da desintegração total, as hierarquias não se desfazem.
Não é um filme fácil, muito menos agradável. É um testamento cinematográfico que firma, com audácia e brutalidade, a despedida de um diretor inquieto, disposto a provocar reflexões profundas sobre identidade e memória.